sábado, 5 de julho de 2014

O Teatro e o Cinema


           O Teatro tem estreito parentesco com o Cinema, mas, ao mesmo tempo, os dois possuem características próprias e diferenças bastante acentuadas. O parentesco principal consiste no fato de ambos resultarem de uma síntese de espetáculo e visual, por um lado, e ação desempenhada por personagens, por outro. Entretanto, as diferenças entre os dois são também substanciais, como acabamos de acentuar.
                 Em primeiro lugar, o papel que o espetáculo visual exerce no Teatro é menos importante do que a ação narrada através das falas e atos dos personagens; no Cinema sucede o contrário, existindo até alguns teóricos radicais que só consideram puro o Cinema mudo.
            Maurice Nêdoncèlle faz a respeito dessa predominância do espetáculo visual no Cinema uma observação muito aguda, quando afirma:

“Um cego pode entender uma peça, ou mesmo representá-la, sem perder sua substância. Ele adivinhará os gestos, a não ser que se trate de uma grande máquina. Acredito mesmo que é preciso fechar os olhos para compreender certas belezas de Berenice e fruí-las completamente. Uma peça que resiste ao rádio-teatro (isto é, que mostra que é capaz de dispensar o espetáculo visual e viver somente pelos diálogos) provou suas qualidades: foi escrita por quem entende do ofício. No filme, ao contrário, o centro organizador é visual, apesar de todos os recursos de síntese de que ele dispõe ou que restam ainda por descobrir. Nele, as palavras e a música são feitos para uma modelagem especial. Sobretudo se dispuser, um dia, de relevo, a ponto de transportar os cenários para a sala, o Cinema afirmará sua originalidade em relação ao Teatro, oferecendo o espaço condutor de uma ideia e dando-o, assim, pela predominância de uma encantação visual que não nos fixa num lugar só mas sim que nos transporta para todos. O Cinema é uma Escultura animada com poderes mágicos, uma Escultura com diálogos, ainda por cima. O Teatro não é tão invasor: ele aspira o expectador, em vez de se estender até ele. Apenas reforma o espaço cênico; atrai a plateia para o palco e sua autoridade mais distante é antes de mais nada verbal, e apenas subsidiariamente gesticular e visual”. (“Introduction à l’Esthétique”, pp 118-119).

            Deixando de lado as possibilidades técnicas futuras, a Nédoncèlle parece atribuir demasiada importância – uma vez que o relevo não trará mudança essencial nenhuma ao Cinema – guardemos de suas palavras essa diferença fundamental entre Cinema e Teatro, o primeiro mais visual e plástico, o segundo mais verbal e literário. É por isso que, no Teatro, a parte literária é tão importante que, apesar de uma peça só se completar mesmo com a encenação, a leitura de seu texto oferece, ao leitor, o que a obra tem de fundamental. Essa parte literária, de ação e verbal da peça é imutável e sobrevivem se a peça é boa, aos variados tipos de encenação em moda durante a passagem do tempo.
                Já a leitura do argumento de um filme dificilmente dará ideia da obra. O argumento, em vez de ser, como a peça escrita, a parte mais importante da obra toda, é apenas um roteiro inicial, do qual o diretor partirá para a criação da obra verdadeiramente cinematográfica, que só estará realizada no mais essencial depois que tudo aquilo for transformado em imagem. Enquanto “clássico”, em Teatro, é o texto Sófocles ou Shakespeare, em Cinema será a grande montagem visual e plástica, de ação e movimento, de Eisenstein ou Chaplin.
            Agora, aqui, como sempre, é preciso evitar que as radicalizações e “purezas” geométricas das definições teóricas prejudiquem o campo da criação. Se o Cinema é mais visual e plástico do que verbal, isso não significa que o único Cinema legítimo seja o mudo. Aliás, o Cinema nunca foi inteiramente mudo: mesmo os filmes de Chaplin, por exemplo, de vez em quando lançavam mão de letreiros para explicar situações ou para comunicar diálogos indispensáveis ao entendimento da história. O que deve ser lembrado sempre é que, num filme, só devem entrar, mesmo, as palavras indispensáveis, isto é, o filme deve ser concebido como se o Cinema ainda fosse mudo, sendo, porém, substituídos os letreiros que eram usados nos primeiros tempos do Cinema, por breves palavras que os substituam.
            Por outro lado, no Teatro, se se levar a extremos o aspecto “literário” do texto, o espetáculo terminará negligenciado e o próprio Teatro entrará em decadência. Toas as grandes fases de criação no Teatro de todos os países têm sido momentos em que os grandes autores teatrais souberam unir as grandes criações poéticas da Comédia ou da Tragédia ao senso do espetáculo, à vida do palco, com atores e cenas que tinham muito de Circo, com o texto literário formando uma unidade harmoniosa com vários outros elementos espetaculares de encenação – a música, o malabarismo dos atores, o ritmo, o canto. Guardemo-nos das estreitezas sistemáticas dos teóricos que, se tivessem voz no tempo em que surgiu o Cinema, talvez tivessem condenado os filmes de Chaplin, dizendo que aquilo não era Cinema, e sim Mímica filmada – do mesmo jeito que hoje condenam certas obras-primas cinematográficas chamando-as de “peças de teatro filmadas”. É verdade que existe um Teatro intimista e psicológico que não abre perspectivas ao Cinema em suas obras. Mas existem outras formas de Teatro, mais épicas, que já têm fornecido assunto para grandes filmes. Basta citar o caso do Teatro japonês, do qual saíram filmes de “samurai”, uma das grandes contribuições oferecidas ao mundo moderno pela arte do Cinema.


SUASSUNA, Ariano. Iniciação à Estética. 3ª ed. Recife: Ed Universitária da UFPE, 1992. pp 297 - 299